Duas convicções a respeito do texto bíblico
(1) Ele é um texto inspirado. Expor as Escrituras é esclarecer o texto inspirado. Revelação e inspiração andam juntas. Revelação descreve a iniciativa que Deus tomou de desvelar-se e, assim, mostrar-se, já que, sem essa revelação, ele permaneceria o Deus desconhecido. Inspiração descreve o processo pelo qual ele fez isso, isto é, falando aos profetas e aos apóstolos bíblicos e por meio deles, e sussurrando sua Palavra de sua boca de tal forma que ela também saísse da boca deles. Caso contrário, seus pensamentos teriam sido inatingíveis para nós.
Se Deus não tivesse falado, nós não nos atreveríamos a falar, porque não teríamos nada a expressar exceto nossas triviais especulações. Mas já que Deus falou, nós também precisamos falar, comunicando a outros o que ele nos comunicou nas Escrituras. De fato, nós nos recusamos a ser silenciados. Como Amós o coloca: “O leão rugiu, quem não temerá? O SENHOR, O Soberano, falou, quem não profetizará?”, isto é, passe adiante a Palavra que ele disse. Similarmente, Paulo, ecoando o Salmo 116.10, escreveu: “Nós também cremos e, por isso, falamos” (2Co 4.13). Isto é, acredita-mos no que Deus disse e é por isso que também falamos.
Tenho pena do pregador que chega ao púlpito sem Bíblia em suas mãos ou com uma Bíblia que é mais trapos e farrapos do que a Palavra do Deus vivo. Ele não pode expor as Escrituras porque não tem Escrituras para expor. Ele não pode falar porque não tem nada a dizer, ao menos nada importante. Ah, mas dirigir-se ao púlpito com a confiança de que Deus falou, que ele fez com que o que disse fosse escrito, e que temos esse texto inspirado em nossas mãos, aí sim nossa cabeça começa a girar, e nosso coração a bater, e nosso sangue a correr, e nossos olhos a brilhar com a glória absoluta de ter a palavra de Deus em nossas mãos e lábios.
Essa é a primeira convicção, e a segunda é esta:
(2) O texto inspirado é, até certo ponto, um texto fechado. Essa é a implicação da minha definição. Expor as Escrituras é esclarecer o texto inspirado. Assim, ele precisa estar parcialmente fechado se for para ser esclarecido. E eu penso que imediatamente vejo seus “pêlos protestantes” eriçados com indignação. O que você quer dizer? Por acaso é que as Escrituras estão parcialmente fechadas? As Escrituras não são um livro completamente aberto? Você não acredita no que os reformadores do século XVI ensinaram a respeito da clareza das Escrituras, que elas são transparentes? Não pode até mesmo o simples e o inculto ler a Bíblia por si mesmo? Não é o Espírito Santo o nosso mestre dado por Deus? E, com a Palavra de Deus e o Espírito de Deus, não devemos dizer que não precisamos do magistério eclesiástico para nos instruir?
Eu posso responder com um ressonante sim a todas essas questões, mas o que você diz de maneira correta precisa ser classificado. A insistência dos reformadores na clareza das Escrituras se referia à sua mensagem central — seu evangelho de salvação pela fé em Jesus Cristo somente. Isso é claro como o dia nas Escrituras. Mas os reformadores não sustentavam que tudo nas Escrituras estava claro. Como eles poderiam fazer isso, quando Pedro disse que existiam algumas coisas nas cartas de Paulo que nem ele conseguia entender (2Pe 3.16)? Se um apóstolo nem sempre entendia outro apóstolo, dificilmente seríamos modestos se disséssemos que nós entendemos.
A verdade é que precisamos uns dos outros na interpretação das Escrituras. A igreja é corretamente chamada de comunidade hermenêutica, uma comunhão de crentes em que a Palavra de Deus é exposta e interpretada. De modo particular, precisamos de pastores e professores para expô-la, para esclarecê-la de modo que a possamos entender. E por isso que o Jesus Cristo que ascendeu, de acordo com Efésios 4.11, ainda está dando pastores e mestres à sua igreja.
Você se lembra o que o eunuco etíope disse na carruagem quando Felipe lhe perguntou se ele havia entendido o que estava lendo em Isaías 53? Ele disse: “Ora, é claro que posso. Você não acredita na clareza das Escrituras?”. Não, ele não disse isso. Ele disse o seguinte: “Como posso entender se alguém não me explicar?” (At. 8.31).
E Calvino, em seu maravilhoso comentário desse trecho em Atos, escreve a respeito da humildade do etíope, dizendo que ele gostaria que houvesse mais homens e mulheres humildes em seus dias. Ele contrasta essa humildade com aqueles que descreveu como arrogantes e confiantes em suas próprias aptidões para entender. Calvino escreveu:
E por isso que a leitura das Escrituras dá resultado com tão poucas pessoas hoje em dia porque mal se acha um em cem que alegremente se submete ao ensino. Ora, se qualquer um de nós for ensinável, os anjos descerão do céu para nos ensinar. Não precisamos de anjos. Nós deveríamos usar todos os auxílios que o Senhor coloca diante de nós para o entendimento das Escrituras e, em particular, pregadores e mestres.
Mas se Deus nos deu as Escrituras, ele também nos deu mestres para expô-las. E aqueles de nós que foram chamados para pregar precisam se lembrar disso. Como Timóteo, devemos nos devotar à leitura pública das Escrituras e à pregação e ensino (lTm 4.13). Devemos tanto ler as Escrituras para a congregação como extrair toda nossa instrução e exortação doutrinais delas.
Aqui, portanto, está o exemplo bíblico de que Deus nos deu nas Escrituras um texto que é tanto inspirado, tendo origem ou autoridade divinas, quanto, até certo ponto, é fechado ou é difícil de entender. Portanto, em adição a nos ter dado o texto, ele nos deu professores para esclarecer o texto, explicá-lo e aplicá-lo à vida das pessoas hoje.
Texto adaptado de A arte e o ofício da Pregação Bíblica